Variações no funcionamento de um gene podem prejudicar a seleção de linfócitos no timo e causar doenças autoimunes
A bióloga Ernna Oliveira viveu seis meses de desolação, errando quase todos os dias, até acertar a mão e injetar com precisão uma solução vermelha de moléculas aptas a inibirem a ação de genes na glândula do timo de camundongos vivos, sem deixar que atingisse o pulmão ou o coração, dois órgãos vizinhos. “Hoje ela faz isso com destreza”, atesta Geraldo Passos, coordenador do laboratório da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto em que ela trabalhou. Por meio desse e de outros experimentos, Passos, Ernna e demais pesquisadores da USP ampliaram o conhecimento sobre a origem das doenças autoimunes, como diabetes tipo 1, lúpus, artrite reumatoide e vitiligo, em que as células de defesa atacam as células saudáveis do corpo em vez de destruírem apenas microrganismos invasores.
Há 10 anos já se sabia que essas doenças resultavam de alterações – ou mutações – prejudiciais em um gene que funciona no timo conhecido como Aire, sigla de autoimmune regulator (regulador autoimune). Quando funciona corretamente, esse gene produz uma proteína que seleciona as células de defesa, impedindo-as de atacar células normais do próprio corpo. A equipe da USP verificou que as doenças autoimunes poderiam resultar também da atividade irregular desse gene, mesmo sem mutações, reforçando as conclusões obtidas por outros grupos de pesquisa, principalmente dos Estados Unidos. “Não é tudo ou nada”, diz Passos. “O gene Aire pode estar perfeito, mas pequenas variações em seu funcionamento também podem aparentemente levar à autoimunidade.”
O trabalho da equipe da USP de Ribeirão Preto contribui para a revalorização do timo, antes visto apenas como um dos lugares de amadurecimento de um tipo de células do sangue, os linfócitos T, e agora considerado um órgão essencial à defesa do organismo. “Tumores no timo ou lesões causadas por cirurgias cardíacas, já que o timo está na frente do coração, podem ser muito prejudiciais para todo o organismo”, observa Antonio Condino Neto, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em São Paulo que também trabalha nessa área.
Defeitos no funcionamento do timo podem causar ou agravar cerca de 30 doenças – não apenas as autoimunes –, como leucemia e outros tipos de câncer, inflamação no intestino ou no coração, além de causar algumas formas de imunodeficiências primárias, conjunto de cerca de 180 doenças raras e de alta letalidade, caracterizadas pelo mau funcionamento do sistema de defesas do organismo (ver Pesquisa Fapesp nº 191 e 206). Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, a equipe de Wilson Savino verificou que a atrofia do timo é uma característica comum das doenças infecciosas, causadas por vírus ou bactérias. Além disso, alertam os médicos, situações comuns como o uso prolongado de grandes doses de corticosteroides e outros medicamentos que inibem o sistema de defesa do organismo também podem reduzir a atividade do timo, não se sabendo se há completa recuperação após a suspensão do tratamento.
Atacar apenas os inimigos
Se as células de defesa atacam o próprio organismo, provavelmente algo saiu errado com o gene Aire, que produz uma proteína, também chamada de Aire, que atua de modo intenso no núcleo das células do timo. Essa proteína controla a produção de diversas proteínas do próprio corpo, como a insulina e o colágeno. “O timo tem uma espécie de biblioteca de proteínas do corpo”, diz Passos. A apresentação dessas proteínas aos linfócitos T que chegam imaturos ao timo, depois de serem produzidos na medula óssea, ensina-os a reconhecer o que é do próprio corpo e deve ser poupado. “Os linfócitos T que atacarem essas proteínas são eliminados antes de migrarem para a corrente sanguínea. Os que não as reconhecerem passarão no teste e serão liberados para a circulação, porque estarão aptos a atacar apenas micróbios e tumores, que são considerados como elementos não próprios.”
Se as células de defesa atacam o próprio organismo, provavelmente algo saiu errado com o gene Aire, que produz uma proteína, também chamada de Aire, que atua de modo intenso no núcleo das células do timo. Essa proteína controla a produção de diversas proteínas do próprio corpo, como a insulina e o colágeno. “O timo tem uma espécie de biblioteca de proteínas do corpo”, diz Passos. A apresentação dessas proteínas aos linfócitos T que chegam imaturos ao timo, depois de serem produzidos na medula óssea, ensina-os a reconhecer o que é do próprio corpo e deve ser poupado. “Os linfócitos T que atacarem essas proteínas são eliminados antes de migrarem para a corrente sanguínea. Os que não as reconhecerem passarão no teste e serão liberados para a circulação, porque estarão aptos a atacar apenas micróbios e tumores, que são considerados como elementos não próprios.”
Nem sempre é assim. O gene Aire e a sua proteína podem estar perfeitos, sem mutações, mas distúrbios em seu funcionamento podem prejudicar a seleção dos linfócitos T que chegam ao timo. Na USP de Ribeirão Preto, um dos experimentos que levaram a essa conclusão foi o de Ernna Oliveira, que injetou moléculas que inibem a ação de genes chamados RNAs de interferência (RNAi), no timo de camundongos. Em consequência, houve uma redução de até 60% na atividade do gene Aire. A produção das outras proteínas próprias no timo e os linfócitos T indesejáveis, que deveriam ter sido eliminados, ganharam a corrente sanguínea, chegaram ao pâncreas e destruíram as células produtoras de insulina, resultando no diabetes tipo 1.
Em 2009 uma equipe da Universidade Harvard havia mostrado que deficiências no gene Aire poderiam produzir o mesmo efeito, a destruição das células beta do pâncreas, e causar diabetes em uma linhagem de camundongo de laboratório que desenvolve naturalmente o diabetes tipo 1. Essa foi uma indicação de que esse gene é essencial para prevenir o ataque a proteínas ou células do próprio corpo, a chamada autoimunidade agressiva. Passos acredita que o mecanismo observado no diabetes tipo 1 poderia também ser uma das causas de outras doenças autoimunes como o lúpus eritematoso, caracterizado por lesões na pele e órgãos internos, ou a artrite reumatoide, marcada pela destruição do colágeno das articulações.
Em um estudo complementar, em colaboração com o médico Eduardo Donadi e a bióloga Elza Sakamoto-Hojo, também da USP de Ribeirão Preto, a equipe de Passos examinou a expressão dos genes de células de defesa no sangue de 56 pessoas com diabetes – 19 com o diabetes do tipo 1, 20 com o do tipo 2, caracterizado pela resistência à insulina, principalmente em pessoas obesas, e 17 com uma forma de diabetes desenvolvida apenas durante a gestação. Uma das conclusões é que o diabetes e a inflamação são fenômenos muito associados, provavelmente um agravando o outro. Além disso, o perfil de genes ativados no diabetes tipo 1 reforçou a hipótese de que a origem da doença estaria de fato na falha em eliminar os linfócitos T que atacam o pâncreas, destruindo as células que produzem a insulina.
Contra fungos
A proteína do gene Aire poderia atuar não apenas no núcleo das células do timo, induzindo a produção de outras proteínas que participarão da seleção dos linfócitos T, mas também no citoplasma das células do timo, favorecendo ou prejudicando a defesa contra microrganismos causadores de doenças, de acordo com os experimentos mais recentes da equipe de Condino Neto. Este grupo examinou as possíveis origens da suscetibilidade a infecções crônicas causadas pelo fungo Candida albicans, uma característica que permanecia inexplicada de uma síndrome hereditária rara conhecida como poliendocrinopatia autoimune, associada à candidíase e distrofia ectodérmica (Apeced, na sigla em inglês), causada por uma mutação no gene Aire.
A proteína do gene Aire poderia atuar não apenas no núcleo das células do timo, induzindo a produção de outras proteínas que participarão da seleção dos linfócitos T, mas também no citoplasma das células do timo, favorecendo ou prejudicando a defesa contra microrganismos causadores de doenças, de acordo com os experimentos mais recentes da equipe de Condino Neto. Este grupo examinou as possíveis origens da suscetibilidade a infecções crônicas causadas pelo fungo Candida albicans, uma característica que permanecia inexplicada de uma síndrome hereditária rara conhecida como poliendocrinopatia autoimune, associada à candidíase e distrofia ectodérmica (Apeced, na sigla em inglês), causada por uma mutação no gene Aire.
Por meio de experimentos em cultura de células humanas, Luis Alberto Pedrosa, da equipe de Condino Neto, concluiu que uma versão anormal da proteína, resultante de uma mutação no gene Aire, deixa de ativar a proteína dectina 1, essencial para ativar um tipo de célula encontrada no timo, os macrófagos, que reconhecem – e atacam – fungos, entre eles o Candida albicans. Desse modo, a proteína do gene Aire poderia agir não só como o chamado fator de transcrição, induzindo a produção de outras proteínas, mas também estimular outro mecanismo de defesa, a imunidade inata, formado por células aptas a identificar e destruir microrganismos causadores de doenças.
Fonte: Revista FAPESP
Comentários
Postar um comentário